Rachel Mariano Pereira
Este é certamente um dos muitos “por quês” que se fazem corriqueiramente presentes na rotina escolar. Quem é o professor ou professora que sequer uma única vez não se fez esta pergunta?
Antes de tentar respondê-la é preciso ter em mente um fator importante e determinante no universo infantil: a fantasia é inerente a muitas fases do desenvolvimento da criança. Assim como o egocentrismo é comum à chamada primeira infância, a fantasia também é e compreende um período ainda mais extenso, até aproximadamente os seis anos de idade.
Nos primeiros anos de vida da criança nosso trabalho é voltado para a sua socialização, em que ela supera a fase egocêntrica e começa a se desenvolver coletivamente, aprende a compartilhar objetos, pessoas, ambientes, enfim, tudo aquilo com que estabelece uma relação de afetividade significativa. Da mesma forma, a fantasia deve ser trabalhada.
É fundamental que se entenda a naturalidade do comportamento em questão. Fantasiar é um exercício saudável, que vai constituir as bases do raciocínio lógico e da criatividade da criança, no entanto, é necessário que a criança possa delegar à fantasia um espaço que não substitua o da realidade.
Desde muito cedo o faz-de-conta é incorporado pela criança. Na medida em que observa os pais, por exemplo, ela se projeta às situações vivenciadas por eles e passa a imitá-los. Daí, o gosto quase inexorável das meninas pelas brincadeiras de casinha. Até, porque, culturalmente as meninas são educadas a imitar as mães, haja vista a vasta indústria de brinquedos que fabrica utensílios domésticos em miniatura, fortalecendo esse referencial. O mesmo ocorre com as bonecas, cuja tecnologia empenha-se cada vez mais em acrescentar-lhes elementos de bebês reais. Durante a brincadeira, pode-se claramente observar que a criança dispensa à boneca o tratamento recebido pela mãe. Já nos meninos é cultivado o gosto pelos carros, pelos esportes e pelos super-heróis, historicamente cultuados pelos homens, cujos brinquedos, da mesma forma sugerem a imitação do referencial masculino.
Existem ainda os jogos de tabuleiros e os jogos recreativos, nos quais se estabelecem regras, número exato de participantes e o aparato necessário para que se dê a brincadeira. Porém estes, tendem a despertar o interesse dos pequenos a partir de uma certa idade, quando já estão socializados e suficientemente maduros para entender e aplicar tais regras. Dessa forma, o que se observa na brincadeira das crianças é, quase sempre, a assunção por parte delas de um personagem adulto, seja a mãe, a professora - quando o alvo observado é a rotina escolar - seja o pai, um irmão mais velho, os avós ou seu super-herói favorito. A criança se faz passar por alguém e fantasia cada situação vivenciada na sua brincadeira.
No entanto, para muitas crianças a fantasia não se limita unicamente ao momento da brincadeira. Elas fantasiam o tempo todo e nesse movimento acabam por verbalizar em tom de realidade algo que verdadeiramente não aconteceu. É exatamente aí que a fantasia assume a faceta da mentira e é esse o momento de intervir.
A fantasia faz parte do desenvolvimento da criança, mas deve ser encarada sempre com redobrada atenção, já que nela podem se revelar dados importantes para compreendê-la em suas necessidades, anseios, desejos.
Muitas vezes uma criança mente acreditando de fato naquilo que expressa, o que pode denotar uma falta de parâmetros para julgar o que é real e o que não é. Quem nunca ouviu falar nos amigos imaginários?
Em outras situações a mentira da criança expressa anseios, vontades, medos, ou ainda, a mera necessidade de se inserir em determinado contexto. É comum, por exemplo, durante a rotina escolar, na tão conhecida “hora da novidade”, um aluno relatar uma viagem, uma visita inesperada, um presente recebido ou até um acidente familiar somente para não deixar de participar do momento. Às vezes numa conversa com os responsáveis na hora da saída, numa reunião, ou numa comunicação pela agenda escolar o professor verifica que a novidade relatada não é mais que uma mentirinha.
Ao verificar que o relato do aluno é falso, o professor não deve, em hipótese alguma, deixá-lo pensar que acreditou, ou esta estratégia será usada por ele novamente em ocasiões mais sérias. Ao contrário, ele deve imediatamente questioná-lo, pedir que esclareça detalhes, demonstrar dúvida e, sem a necessidade de causar-lhe constrangimento, perguntar se o que ele conta é mesmo verdade. No caso de insistência, o fato deverá ser exposto aos responsáveis, sem, é claro, deixar de tomar cuidados ainda mais redobrados, afinal, nem todos os pais aceitam que seus filhos mentem.
Um aluno pode mentir por insegurança, insatisfação, por medo de alguma repreensão, enfim, diversos são os motivos e as formas de se contar uma mentira. O importante é que o professor nunca deixe que ela se estenda.
Como já foi dito, fantasiar é natural, mas quando ela se torna mentira e esta se torna hábito, pode se configurar num desvio de caráter. Por isso a mentira deve sempre ser combatida, principalmente quando contada gratuitamente.
Existe o que podemos chamar de mentiras justificáveis, como aquela que a criança conta quando faz algo de errado e foge da punição. Neste caso existe a mentira e existe uma razão suficientemente clara para que ela tenha sido contada. Não devemos, porém, confundir justificável com aceitável. A criança deve ser sempre lembrada de que dizer a verdade é correto e saudável para sua vida em sociedade.
Porém existem as mentiras injustificáveis, como as que são contadas simplesmente por contar. Essas são as mais sérias, pois nunca se pode prever a dimensão que podem tomar. Existe um antigo provérbio chinês que diz que “quando se conta uma mentira é preciso contar outras mil para sustentar a primeira” e esse efeito é catastrófico.
Observe, professor, a conversa de seus alunos, intervenha quando necessário e nunca julgue uma mentira como inocente, pois nunca se sabe quantas foram ditas antes. Leve o assunto a frente, converse com seu coordenador, procure e encaminhe a criança a um acompanhamento profissional, se necessário. Por trás de uma mentira pode haver uma gama incalculável de conflitos afetivos, estruturais, relacionais entre tantos outros. Ou pode ainda ser mero fruto de (maus) exemplos familiares.
A mentira pode se tornar uma compulsão. Há adultos que simplesmente não conseguem passar um único dia sem mentir, mesmo sabendo que ninguém acredita em seus relatos; e já existem terapias específicas para tratar da questão.
Compreenda seu aluno e ajude-o a também se compreender. É no cotidiano que a grande maioria dos problemas podem ser combatidos.
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